O enorme Mercedes Benz atravessa as faixas a toda a velocidade e trava impetuosamente, mesmo em frente à minha CN. Estava a controlar os seus movimentos pelos espelhos, e tinha já abrandado, pelo que aquela paragem não chegou a ser tão perigosa como poderia ter sido.
"Lá vamos nós outra vez..." pensei para com os meus botões. Nos últimos tempos pareço atrair episódios de "road rage" de cada vez que me faço à estrada. Há menos de dois meses, acabei o dia num esquálido posto da PSP, depois de um condutor me ter tentado atirar ao chão, por várias vezes, no meu percurso para casa. O meu crime de lesa-vaca-sagrada foi ter buzinado para avisar este senhor que ele estava a fazer marcha a trás para cima de mim.
Desta vez, no entanto, a culpa era minha. Momentos antes estava a tentar furar uma fila de carros pouco cooperantes, na marginal, quando inadvertidamente dei um pequeno toque no espelho de um imponente carrão de cor prata. Medindo o impacto mentalmente, achei que não valia a pena parar. Admito que o facto de se tratar de uma viatura de tantos milhares de euros também pesou na decisão, não por temer o valor que tivesse que pagar por um eventual estrago, mas porque nutro um certo desprezo por quem possui tais artefactos num país tão pobre e injusto como o nosso.
Talvez o estimado leitor considere desde logo incorrecto que se ultrapasse e circule de scooter entre veículos imobilizados. Se for esse o caso, tenho pena de si. É verdade que é ilegal, mas votar também o era, não há muito tempo atrás. Se o português é comodista e insiste em ir a todo o lado sozinho na sua intocável gaiola-sagrada, entupindo e poluindo tudo à sua passagem, eu sou obrigado a esperar também? Não me parece.
No entanto, eu sou a minoria. Por todo o lado sou relembrado desse facto. Até pelos meus próprios amigos. Sou também extremamente vulnerável encima de uma scooter, no meio de maníacos protegidos na sua armadura de lata. Poucos facilitam a passagem. Parecem querem condenar todos à tortura diária que escolheram para si próprios. Alguns chegam mesmo a fechar a passagem, atirando o carro para cima de mim. Parecem acreditar que isso é uma forma de justiça. Se eles esperam, todos têm que esperar. E se eu acabar debaixo do carro, a culpa será certamente minha, já se sabe como as motos são perigosas, não é?
O pequeno homem sai do carro, furibundo. Diz que eu lhe bati e fugi, que devo ser parvo, que sou uma besta. Gesticula, está histérico, descontrolado. Eu estou muito calmo, "vamos lá ver o estrago" convido, ignorando a forma como aquele senhor de baixa estatura se estava a expressar. Olhamos para o espelho e não vemos absolutamente nenhum dano. Nada. Se eu já o esperava, ele parece surpreendido. Em vez de tomar conforto neste facto, parece ficar ainda mais agitado. Agora diz que tenho "merda na cabeça" e que vai atirar o carro para cima de mim. Sim, é isso, vai atirar o carro para cima de mim. Diz que os ricos podem tudo e ri histericamente. Permaneço em silencio. O pequeno homenzinho usa um casaco de malha e uns óculos de aros redondos, parecendo ainda mais frágil. Podia acalma-lo com alguma violência física. A ideia ocorreu-me. Mas para quê? "Homem, vá-se embora" acabo por dizer. E no meio de mais ameaças, vou-me eu embora. Ele salta para o carro e persegue-me por alguns quilómetros. Depois desiste.
Se lhe ocorreu porque não tenho escrito nada ultimamente neste blog, esta é a resposta: o que tenho para contar é tudo tão negativo, tão triste, que prefiro não o fazer. Nesta sociedade de 5,5 milhões de sagrados automóveis e mais alguns de pessoas ignorantes e preconceituosas, é difícil andar fora do rebanho. Esperando que nem todos tenham a minha experiência, e não querendo assustar ninguém que esteja a pensar fazer-se à estrada numa scooter, eu fico por aqui.
quarta-feira, 3 de junho de 2009
O homem da gaiola prateada
Publicada por Bessa à(s) quarta-feira, junho 03, 2009
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9 comentários:
É a nossa triste realidade...
Grande texto Bessa!
Ah... boa sorte!;)
Preferia ter sabido disto de outra forma... Mas enfim!
Realmente há que ter paciência para estas aves raras!
Efectivamente andava um pouco apreensivo com tamanha ausência de notícias num blogue que visito com alguma regularidade. Cheguei a temer por ter ocorrido algum acidente mais grave, mas ainda bem que foi apenas o teu desencanto.
Cá se esperam mais notícias.
Regra geral, gosto muito de ler os teus textos. Tens habitualmente boas observações e raciocínios inteligentes. Foi, por isso, com um sentimento de profunda de decepção que li este excerto:
"Momentos antes estava a tentar furar uma fila de carros pouco cooperantes, na marginal, quando inadvertidamente dei um pequeno toque no espelho de um imponente carrão de cor prata. Medindo o impacto mentalmente, achei que não valia a pena parar. Admito que o facto de se tratar de uma viatura de tantos milhares de euros também pesou na decisão, não por temer o valor que tivesse que pagar por um eventual estrago, mas porque nutro um certo desprezo por quem possui tais artefactos num país tão pobre e injusto como o nosso."
Por favor... Essa mentalidade justiceira à comunista da velha-guarda soa desajustada e mesquinha. Desprezas uma pessoa porque gosta de automóveis caros e pode comprar um? Desprezas porque há gente a viver em pobreza? O que te diz que esse homem não é até um humanista e que não dá o seu contributo pessoal para combater a pobreza? Provavelmente não dá, mas nenhum de nós tem poder de adivinhação para pré-julgar dessa forma.
Os estereótipos relacionados com a riqueza alheia são sempre justificados de forma tacanha e este não é excepção.
Mais a mais, nada justifica o facto de não teres tomado tu próprio a iniciativa de parar para ver se havia estragos e de pedir desculpa mesmo que os não houvesse.
Quando uma forma de estar na vida - como é a do utilizador de scooter - começa a raiar o radicalismo e a ser motor de ódios, começa a perder adeptos.
Perdeste a razão nesse episódio. A causa dos "scooteristas" sofreu um golo.
Bessa, sou forçado a concordar com a observação que o Hugo fez e com a metáfora do auto-golo.
Também me parece que te deixaste dominar pelo preconceito.
Não sei se entendi bem, mas a parte final do teu post é uma despedida? Se é, enquanto leitor deste espaço, gostava que reconsiderasses. Pensa nisso e
não desanimes!
Temos que combinar uma volta nas Helix para espairecer :)
Um abraço.
Sim, é claro que eu deveria ter parado, e é claro que o tipo de carro em questão não deveria ser relevante para nada.
Mas do que este post trata é mesmo do mentalidade "guerrilha urbana" que toma conta das pessoas, eu próprio incluído. Não é de desprezar a perigo a que somos sujeitos a diário por automobilistas inconscientes. A minha experiência diz-me que automobilistas de viaturas "premium" são mais perigosos para mim. É um facto e eu vivo com ele, tomo decisões com ele. Correcto ou não, com o tempo fica mais difícil ser magnânimo, fica mais difícil dar a outra face.
Não é bonito, não é positivo, é com isso que ando a tentar lidar.
Motos são uma versão reduzida e com menos rodas que uma gaiola dourada. Também poluem, também são um monte de metal, também fazem barulho, também são conduzidas eventualmente por gente mal disposta, mal educada ou incivilizada. Gente apressada que acha que é imprescindível ir daqui ali o mais rapidamente possível. E que por vezes também se esquece de que há outras pessoas no mundo.
As bicicletas são mais estreitas, mais leves e andam a menores velocidades, portanto passam melhor entre os carros e quando eventualmente batem em alguma coisa fazem-no com delicadeza e geralmente sem estragos (a não ser, talvez, para o próprio ciclista).
A velocidade mais reduzida permite apreciar melhor a vida, as paisagens, o que acontece à volta. E parar quando é preciso parar.
A bicicleta mamtém-nos em forma (sem ter de pagar ginásio), obriga-nos a ponderar melhor as nossas deslocações, é mais barata, de baixa manutenção, não mama combustíveis fosséis.
Ok, exige fazer exercício fisico. As pernas têm de andar ali às voltas para avançarmos. Sua-se um bocado no verão... Que vida dura!
Eu cá voto pelo BikeLog!! :)
Abraço! Energias positivas!
Sim, é verdade, as "Motos são uma versão reduzida e com menos rodas que uma gaiola dourada." Por isso é que eu tenho uma scooter! : )
E os scooteristas são todos pessoas civilizadas. Hum, quase todos. OK, alguns pelo menos são...
Bessa, ainda bem que retomaste o blog... Já andava a estranhar o silencio prolongado. ;)
Abraço
Júlio
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